15.4.22

poema de Eugénio de Andrade


RETRATO DE ACTRIZ
(Eunice)

É uma mulher ao espelho; prepara-se

para atravessar o deserto antes de entrar
em cena. Não sei de solidão maior,
já na infância o medo era o meu diadema,
tremia sempre antes de me atirar do muro
sobre o montão de folhas secas; afinal
eram tão maternais as mãos do ar
sobre o meu corpo tão inocente ainda;
mas ignorar é outra forma de saber.
Agora ia ser outra mulher, amar
o poder, pôr na cabeça uma coroa,
sentir o cheiro do sangue até à náusea,
cuspir a vida por não poder suportá-la.
Por fim, trémula ainda, regressará à sua
solidão, à poeira dos dias luminosos,
já sem receio de saltar sobre as folhas
secas - há tantos, tantos, tantos anos.

16-8-84