Às vezes apetece-me começar a viver uma outra vida, com outro rosto, outra morada, outra identidade, sem contudo deixar de ser eu, sempre e só eu, e acreditem que gostava de ficar sentado numa esplanada, numa cadeira branca de palhinha, a ver-me ser outro sem deixar de ser eu, com os mesmos tiques, com a mesma exaltada paixão pelo timbre da palavra, com o mesmo vício dos livros, que é o único que verdadeiramente tenho e que me custa os olhos da cara. Mas é impossível, paciência. Resta-me a transfiguração naquilo que escrevo, compulsivamente, como um asmático a tentar libertar-se do ar que lhe oprime o peito. E para dizer a verdade, que é coisa que a poesia não tem necessariamente que dizer, não sei ao certo o que poderia ser se chegasse a ser outro. O que faria eu sem outra identidade? Seria astronauta, veterinário por amor aos bichos, corretor de bolsa transformado em pintor impressionista como o meu querido Gauguin, cinzelador de metais raros e preciosos, ourives de corte, cronista das tragédias sociais? Creio que nenhuma das hipóteses me agradaria e voltaria a ser aquilo que sempre fui, heterónimo de mim mesmo, a fugir de mim aos ziguezagues, cobra largando a pele dos ódios e dos medos sem se importar com a estação em que a mudança se opera (e para que a rima não falte), seja ela Inverno ou Primavera.